Presente Amigo (para o meu pai)
8 agosto, 2020
Meu pai fez em março passado 80 anos.
Chegamos a pensar em algumas maneiras de festejar a data: uma festa, uma viagem, ou as duas coisas juntas. Mas seu aniversário coincidiu com a chegada temida do coronavírus e isso fez com que todos os planos fossem abortados. Então, já em isolamento, repartimos um bolo e mandamos o vídeo para os familiares.
Tenho visto muitos outros amigos celebrando as oito décadas dos seus genitores, e sei que se trata de uma grande alegria para aqueles que conseguem alcançar essa data importante. Especialmente numa hora dessas, em que há uma pandemia em curso e que tem vitimado muito os mais idosos. Por isso, compartilho exultante dessa felicidade que é ter um pai octogenário, mesmo que isso signifique uma série de cuidados de nossa parte e limitações evidentes causadas pela idade. No meu caso, tenho um pai com a doença de Parkinson, tratamento severo à base de drogas pesadas e atenção paciente e constante do amanhecer à noite.
Zé de Cezário, como ficou mais conhecido no sertão onde tocou metade de sua carreira musical, foi também diretamente responsável pela aproximação da filharada com a música, dentre os quais eu e o meu irmão acabamos por nos profissionalizar nesse campo. Vivemos da música e de todos os desafios que a escolha nos obrigou. Mas somos recompensados por exercer um ofício com amor, nascido com a gênese da arte que carregamos no sangue, que nos faz trabalhar duramente sem esperar nada em um país que renega a grande maioria de seus artistas ao ostracismo e ao esquecimento.
O 3º CD que gravei em estúdio, Várzea da Caatinga (2017), é dedicado à beleza profunda dos olhos azuis do meu pai, por ele ter tido a coragem de nos estimular a seguir com nossos sonhos em relação ao trabalho, romper com a liturgia da caretice, vibrar nas emoções familiares (ou não tá nem aí às vezes também), … enfim, por tudo. Pela educação que nos deu, pelo que nos ensinou e nos ensina com a sua simplicidade, pela dignidade de não ter quebrado nunca nenhum contrato, por todas as lições.
Presente Amigo é uma canção que lhe escrevi, inspirado no nosso universo musical sertanejo, nordestino, colhendo os versos no trajeto até a chapada do Araripe, quando fomos juntos celebrar o centenário de Gonzaga, de quem ele sempre foi grande admirador. Com essa música, gravada com a participação instrumental dele e de Lulinha Alencar, reverencio sua importância e significado em nossa trajetória e demarco a fonte de inspiração que sua sanfona traz a cada dia dentro de nós que somos seus filhos.
Com Amor.
TOCANTE – Uma Leitura Delicada de Dominguinhos por 2 Nomes de uma Nova Geração de Sanfoneiros
24 maio, 2017
Estive presente ao lançamento do CD Tocante, de Lulinha Alencar e Mestrinho, acontecido no início desse maio no palco do Sesc Pompeia, em Sampa. O disco reuniu algumas pérolas que seu Domingos compôs para homenagear alguns nomes da música brasileira, o mesmo que os dois sanfoneiros fizeram em relação ao mestre, com quem chegaram a dividir parte de suas vidas profissionais, em noitadas forrozeiras e turnês juninas. Além das regravações dessas obras, tanto Lulinha quanto Mestrinho também gravaram composições próprias, feitas para homenagear seu mestre, declaradamente uma influência definitiva na formação deles.
Lulinha é potiguar e Mestrinho é sergipano, de Itabaiana. Dominguinhos era natural de Garanhuns, pernambucano como Gonzaga. Temos aí uma sequência geracional que dão ao acordeom, a popular sanfona, um uso muito bem apropriado para esse instrumento, tão espetacular. Secularmente mais ligado às artes populares, a partir de Dominguinhos, pela sua personalidade e carisma, além da grande desenvoltura técnica, passou a dialogar com outras linguagens musicais, mais rebuscadas. E é agora explorada nas mais diversas direções, em fusões com o jazz ou amplamente incluída em arranjos de vários gêneros em estúdio ou em apresentações vivas.
No show conjunto prevaleceu o som límpido do solo dos instrumentos, numa performance inusual, com as duas sanfonas conversando, num diálogo inspirado e uma capacidade excepcional dos músicos em respeitar um ao outro, abrindo pausas para as entregas intensas de cada um em seus momentos, deixando nítida a impressão de uma perfeita sincronia entre os dois, convergindo sempre para um ápice comum , que arrebatava o público presente.
O roteiro da apresentação seguiu basicamente o gravado, tendo sido feita uma pequena alteração inicial para abrirem o programa com ‘Ciao, São Paulo’, a única exceção aos autores referidos, sendo esta uma canção composta pelo renomado acordeonista francês Richard Galliano, também dedicada a Domingos e gravada pelos três admiradores confessos do nordestino, falecido poucos meses depois da celebração do centenário de seu padrinho famoso, Luiz Gonzaga.
No palco, a sobriedade de um cabide onde foram dependurados 3 chapéus brancos de couro, típicos da indumentária usada notadamente por Dominguinhos quando de suas apresentações ou em fotografias, a apurada serenidade na iluminação de Pedro Altman e uma competência elegante de Adonias Jr para captar com maestria o som dos dois instrumentos em cena. Quando a música e os músicos são desse tal nível, convém dispensar demais artifícios.
Foi isso. E foi bom assim.